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Ivan Moody (1964-2024)


Foto: Ivan Moody · © CESEM

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Nascido em Londres em 1964 e com uma forte ligação com Portugal onde se tinha estabelecido há várias décadas, tendo desenvolvido uma intensa carreira de compositor e musicólogo, Ivan Moody estudou Música e Teologia nas Universidades de Londres, Joensuu e York, onde se doutorou. Entre os seus professores estavam Sir John Taverner, Brian Dennis e William Brooks, sendo que, como o primeiro, Ivan Moody sentiu uma atração forte à música, espiritualidade e liturgia da Igreja Ortodoxa, cuja música e fé iriam desempenhar um papel fundamental tanto na sua própria criação musical como na sua vida. «A minha visão da criação musical é teológica, ou, melhor, doxológica. Para mim, a música tem uma função espiritual, e uma origem espiritual. No meu caso específico, trabalho muito com conceitos teológicos da tradição cristã ortodoxa. Neste sentido, já fui inevitavelmente categorizado como holy minimalist e tenho muita admiração por Tavener, Pärt e Górecki. Mas além de ser um compositor que escreve muita música coral e se inspira na tradição cristã, não me revejo nessa classificação.» 1

Ivan Moody percebeu que queria ser compositor aos 13 anos, tendo conhecido uma grande parte do repertório clássico mainstream, e algum jazz através da coleção de discos do seu pai. Foi então que rapidamente se tornou um grande admirador de Tchaikovski e Sibelius. Houve também a inevitável flauta de bisel na escola primaria e o cantar em coro. «Mais tarde entrei numa organização musical semiligada à escola secundária que frequentava, na qual cantei no coro e tocava contrabaixo na orquestra, e participei também numa produção do “Ludus Danielis”, que foi uma introdução extraordinária ao mundo da música medieval.» 2

Um dos momentos que suscitou em Ivan Moody o desejo de compor a sua primeira peça (uma canção) foi ouvir uma análise de uma canção de Debussy na rádio feita por Anthony Hopkins, tendo assim tomado consciência de muitas sutilezas sobre as quais nunca teria pensado. Não obstante, o modelo musical desta primeira peça sua foi uma canção de Tchaikovski, “Moy geni, moy angel, moy drug...”. «Levei a canção para a escola e mostrei ao meu professor de música, que me encorajou, e nunca mais parei de escrever.» 3

Outro momento da altura da educação de Ivan Moody que o marcou profundamente foi a experiência de cantar a “Sinfonia de Salmos” de Stravinski. Como recorda o compositor: «O último andamento – aquele movimento-em-estase – tornou-se para mim uma espécie de modelo e muita da minha música procura chegar a um momento de completa transcendência semelhante.» 4 Entre outras obras que naquele tempo Ivan Moody chegou a conhecer e que chegaram a constituir para ele referências essenciais é preciso mencionar: “Sinfonia n.º 10” de Shostakovitch, “Inori” de Stockhausen e “Répons” de Boulez, cuja primeira versão o deixou maravilhado, particularmente com a parte da eletrónica que lhe abriu «um mundo sonoro novo e mágico» 5. Na altura da faculdade, Ivan Moody foi ainda ver em Londres a ópera “Le Grand Macabre” de Ligeti que lhe abriu os olhos a uma abordagem diferente não só a este género musical, mas também a toda a história da música. Durante esse período chegou também a descobrir e conhecer, através de gravações e partituras, a música de Pärt e Górecki e muita música antiga. «Também conheci bastante cedo a obra de Tavener, com quem estudei posteriormente, e a música dele teve uma influência forte na minha, embora as parecenças tenham naturalmente diminuido ao longo da minha carreira. Considero certas obras, como “Akhmatova Requiem” e “Ikon of Light”, obras-primas. Outros nomes que me marcaram são Sofia Gubaidulina, o australiano Peter Sculthorpe e o grego Michael Adamis e a música coral renascentista (incluindo o renascimento português) continua a ter uma grande importância, bem como o canto litúrgico bizantino e russo.» 6

Ivan Moody foi investigador integrado e membro da direção do CESEM – Centro de Estudos de Sociologia e Estética Musical da Universidade NOVA de Lisboa. Foi ainda reitor da paróquia de São João o Russo no Estoril, professor da Universidade de Joensuu (Finlândia) e era académico no Institute of Sacred Arts (St Vladimir’s Orthodox Seminary, Nova Iorque), presidente da International Society for Orthodox Church Music e do painel de música da International Orthodox Theological Association. Entre 2004 e 2005, Ivan Moody colaborou também com o MIC.PT – Centro de Investigação e Informação da Música Portuguesa.

Como musicólogo, publicou amplamente sobre a música da Península Ibérica, Rússia e Balcãs, música sacra contemporânea e música e teologia, tendo sido várias vezes vencedor do Prémio Santander-Totta. O seu livro “Modernism and Orthodox Spirituality in Contemporary Music” (“Modernismo e a Espiritualidade Ortodoxa na Música Contemporânea”) foi publicado em 2014 (ISOCM & SANU, 2014) e em 2017 Ivan Moody coeditou, juntamente com Vesna Sara Peno, o volume coletivo “Aspects of Christian Culture in Byzantium and Eastern Christianity. Word, Sound and Image in the Context of Liturgical and Christian Symbolism” (SASA & ISOCM, 2017). Na sinopse do primeiro livro Ivan Moody escreveu: «Modernismo e espiritualidade da Igreja Ortodoxa parecem ser polos opostos – enquanto o primeiro inova e fragmenta, o segundo tem raízes numa tradição imutável. Não obstante, como este livro mostra, a realidade acaba por ser mais complexa.» 7 Adicionalmente, Ivan Moody foi editor do Journal of the International Society for Orthodox Church Music e coeditor da Revista Portuguesa de Musicologia (publicada em conjunto pela SPIM, o CESEM e o INET-md), para cuja afirmação no panorama musicológico nacional e internacional contribuiu de forma significativa. Durante vários anos Ivan Moody colaborou também com a revista Gramophone, escrevendo textos e críticas sobre a música contemporânea em geral e a música coral de várias épocas, desde Hildegard von Bingen até Taverner e mais além.

O corpo substancial da música de Ivan Moody inclui obras e colaborações como: “Canticum Canticorum I” (1985) para o Hilliard Ensemble e “Prayer for the Forests” (1990), obra que ganhou o Prémio Arts for the Earth Festival, tendo sido estreada pelo Coro Tapiola na Finlândia; o oratório “Passion and Resurrection” (1992), baseado em textos litúrgicos e estreado pelo grupo Red Byrd e pelo Coro de Câmara da Filarmónica da Estónia, sob a direção de Tõnu Kaljuste; “Qohelet” (2013) para coro e ensemble de violas de gamba, obra encomendada pelo De Labyrintho; “Vespers Sequence”, para o ensemble New York Polyphony, obra estreada em Nova Iorque em janeiro de 2017; e “Isangele”, peça estreada pelo Coro de Câmara Inglês no Festival Patmos (Grécia), em agosto de 2018. Outros projetos seus mais recentes incluem obras para o sexteto vocal alemão Singer Pur, o cornetista Bruce Dickey e um concerto para o pianista americano Paul Barnes. Entre os executantes da música de Ivan Moody destacam-se também, Raphael Wallfisch (o concerto de violoncelo “Epitaphios” de 1993), Trio Mediaeval, The Tallis Scholars, Chanticleer e Capella Romana, sendo a sua música editada pela ECM, Hyperion, Telarc, Warner Classics e Sony Classical, entre outras etiquetas.

E quais as obras que o compositor considerou pontos de viragem no seu percurso? Como disse Ivan Moody na entrevista dada ao MIC.PT em abril de 2014: «Penso que “Passion and Resurrection” (1992) foi um momento muito significativo de afirmação de linguagem, e em termos de tamanho e profundidade. Depois, penso que “Endechas y Canciones” (1996), ciclo escrito para o Hilliard Ensemble, abriu um novo caminho em termos de linguagem harmónica e abertura às possibilidades da música tradicional. O “Akáthistos Hymn” (1998) também foi muito importante por ser uma obra – para coro a capela com uma duração de 90 minutos (!) – completamente organizada segundo uma estrutura litúrgica, mas incorporando vertentes diferentes da minha linguagem composicional. Com o “Canon for Theophany” de 2002, penso que consegui pela primeira vez numa estrutura grande, uma linguagem natural que conciliava os meus instintos criativos e o imperativo litúrgico. No ano seguinte, “Linnunlaulu”, para piano e orquestra, encomenda da OrchestrUtopica, também foi um momento de consolidação, mas neste caso em termos instrumentais, e também foi um ponto de partida, na sua utilização da heterofonia. Adicionalmente, “Passione Popolare” (2005) e “Ossetian Requiem” (2006) foram importantes em maneiras diferentes. A primeira obra ligou o litúrgico ao instrumental e ao folclórico (aqui a Magna Graecia de Bizâncio e Itália) de uma maneira completamente integrada, e tive muito orgulho em que tenha sido estreada belissimamente por um conjunto italiano, num festival italiano. A segunda foi uma reação instintiva à tragédia de Beslan, e tive muito medo de entrar na política; mas com a encomenda de um requiem curto, encontrei uma maneira de lidar com o assunto. Em 2008 escrevi o “Stabat Mater” para coro e quarteto de cordas, que também foi um ponto de encontro entre o Oriente e o Ocidente, juntando textos e linguagens musicais de inspiração grega, russa, sarda e inglesa. Desde então, penso que tenho tentado aprofundar e apurar estes encontros linguísticos em termos musicais.» 8

Em 2014, Alexandra Coghlan escreveu na revista Gramophone sobre a gravação da obra “Simeron” (2012) de Ivan Moody pelo Goeyvaerts String Trio e pelos cantores Zsuzsi Tóth, Barnabás Hegyi e Olivier Berten (ed. Challenge Classics). Nesta crítica, a jornalista musical tentou captar as influências na música de Ivan Moody, tanto aqui como nas outras obras do compositor. Alexandra Coghlan descreve “Simeron” como uma peça «típica na obra mais recente de Ivan Moody – uma destilação e cristalização de um estilo que se tornou ainda mais limpo e refinado em termos de textura. Utilizando o texto grego do Rito Bizantino da Semana Santa e um sermão do Bispo Melito de Sardes, a obra tem uma adstringência harmónica para equilibrar o instinto simultaneamente complacente e inflexível para a melodia. Aqui o canto encontra-se com a lamentação humana; os corais extáticos rompem a cromática em aceleração numa performance cuja precisão e restrição apenas aumentam a intensidade.» 9

Em termos do processo subjacente à sua prática de composição, Ivan Moody referia-se com frequência à lição de Stravinsky que dizia que era melhor alguém dar limites a uma determinada obra para assim despertar a criatividade. «Acho que é muito mais difícil quando isso não existe, quando não há uma moldura para o trabalho que lança desafios ao compositor» 10. No início do processo de composição Ivan Moody tinha de perceber o «porquê da obra e a razão da sua existência» 11. Depois passava por uma fase caótica e desorganizada até perceber o que a obra era. Normalmente, vinha como «um fragmento de melodia, um acorde, ou algo mais vago, uma imagem sonora, colorida, mas sem definição absoluta» 12. Feito isso, o compositor passava à escrita das notas e ao desenho da forma. Não obstante, tudo isso podia ainda mudar no processo da composição. «A obra começa a ter a sua própria vida e a assumir contornos inesperados. É uma espécie de diálogo entre a obra e eu próprio.» 13

A proximidade e a relação forte que Ivan Moody teve com Portugal e o meio musical português, exprimia-se e concretizava na sua postura perante o fenómeno por alguns proclamado como o «Segundo Renascimento da Composição em Portugal». Neste sentido, foi significativa não só a atividade de Ivan Moody enquanto musicólogo e autor de textos e trabalhos académicos, mas também o seu envolvimento em iniciativas de cariz mais ativista, por exemplo representando o GIMC – Grupo de Investigação em Música Contemporânea do CESEM no âmbito da riZoma – Plataforma de Intervenção e Investigação para a Criação Musical. Relativamente à situação da música erudita contemporânea criada em Portugal, Ivan Moody disse ao MIC.PT em 2014: «Acho que há imenso talento composicional em Portugal, especialmente entre jovens compositores. Penso que isto vem precisamente da contradição do mediterrâneo na periferia. O que não há, como todos sabemos, é oportunidades. Um amigo disse-me recentemente que, quando vai ao site da rádio finlandesa, estão quase sempre a tocar Sibelius. Imagine se, indo ao site da RTP, se ouvisse quase sempre Freitas Branco ou Vianna da Motta... A presença da música portuguesa em concerto limita-se praticamente a aberturas, às quais se seguem obras dos grandes, do centro. E, por consequência, os compositores vivos são tratados da mesma maneira, como uma espécie de mal necessário. Mas continuo a insistir na existência de grande talento composicional em Portugal e, também, em certas instituições de cariz particular, ou semi-particular, que têm a visão de apoiar estes esforços.» 14

Ivan Moody desapareceu precocemente no início deste ano. Se não tivesse desaparecido, no dia 11 de junho de 2024 teria completado 60 anos. Como este compositor, investigador académico e musicólogo viu o futuro da música de arte? «Com otimismo, que é a única coisa que pode contrariar o pessimismo.» 15

julho de 2024 · © MIC.PT

NOTAS DE RODAPÉ

1 Ivan Moody na entrevista dada ao MIC.PT em abril de 2014: LIGAÇÃO
2 Ibidem.
3 Ibidem.
4 Ibidem.
5 Ibidem.
6 Ibidem.
7 Ivan Moody, fragmento da sinopse do livro “Modernism and Orthodox Spirituality in Contemporary Music” (ISOCM & SANU 2014). Tradução para português: Jakub Szczypa.
8 Ivan Moody na entrevista dada ao MIC.PT em abril de 2014: LIGAÇÃO
9 Alexandra Coghlan, “PÄRT Stabat Mater MOODY Simeron”, Gramophone, 2014. Tradução para português: Jakub Szczypa.
10 Ivan Moody na entrevista dada ao MIC.PT em abril de 2014: LIGAÇÃO
11 Ibidem.
12 Ibidem.
13 Ibidem.
14 Ibidem.
15 Ibidem.


Ivan Moody · Playlist

 
Ivan Moody · Canticum Canticorum I [Surge, propera amica mea] (1985)
The Hilliard Ensemble: Rogers Covey-Crump (tenor), John Potter (tenor), Gordon Jones (barítono), Barry Guy (baixo), David James (contratenor)
A Hilliard Songbook – New Music for Voices · ECM New Series 1996
  Ivan Moody · Canticum Canticorum I [Surge, propera amica mea] (1985)
The Hilliard Ensemble: Rogers Covey-Crump (tenor), John Potter (tenor), Gordon Jones (barítono), Barry Guy (baixo), David James (contratenor)
A Hilliard Songbook – New Music for Voices · ECM New Series 1996
 
Ivan Moody · Canticum Canticorum I [Ego dilecto meo] (1985)
The Hilliard Ensemble: Rogers Covey-Crump (tenor), John Potter (tenor), Gordon Jones (barítono), Barry Guy (baixo), David James (contratenor)
A Hilliard Songbook – New Music for Voices · ECM New Series 1996
  Ivan Moody · Phos (1994)
Cláudio de Pina (órgão)
 
Ivan Moody · The Akáthistos Hymn [Koukoulion 1] (1998)
Cappella Romana, Alexander Lingas (maestro)
2018 Cappella Romana
  Ivan Moody · Nocturne of Light (2009)
Paul Barnes (piano), Quarteto de Cordas Chiara
 
Ivan Moody · Fioriture (2013)
Paul Barnes (piano)
  Ivan Moody · Phosphorescence (2017)
Cláudio de Pina (órgão)
· Ivan Moody · “Canticum Canticorum II” (1994) · Machaut Machine · gravação: Igreja Uppåkra; edição: Martin Svensson ·
· Ivan Moody · “The Akáthistos Hymn – Ikos 24” (1998) · Cappella Romana, Alexander Lingas (maestro) · 2018 Cappella Romana ·
· Ivan Moody · “Trisagion” (2007) · Armando Possante (barítono), OrchestrUtopica, Tapio Tuomela (maestro) · gravação ao vivo: Cultugest, Lisboa, 22 de setembro de 2007 ·
· Ivan Moody · “Iz minuta u minut” (2010) · Pedro Neves (maestro), Sond’Ar-te Electric Ensemble · CD: “CADAVRES EXQUIS Portuguese composers of the 21st century” [Miso Records] ·
· Ivan Moody · “Dragonfly” (2013) · Luís Gomes (clarinete baixo), Grupo de Música Contemporânea de Lisboa, Christopher Bochmann (maestro) · gravação ao vivo: Palácio Foz, Lisboa, 27 de junho de 2014 ·
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